sábado, 19 de julho de 2008

À atenção do Dr. Ted Tampinha

O dia 13 de Junho de 1982 ficará, para sempre, marcado como um dos mais tristes para o futebol português. Defrontam-se Guarda e Académico de Coimbra (CAC), em jogo de repetição da Zona Centro da 1ª divisão. A violência anda à solta durante horas. Um título do jornal "A Bola" do dia seguinte diz tudo "Ambiente de guerra em Celorico da Beira".

O CAC solicitara que a repetição do encontro Guarda-Académico tivesse lugar em Seia, tendo em conta as condições do campo de Celorico. Não apenas em matéria de segurança, como de dimensão. O recinto pelado, não tinha uma única bancada, pelo que os assentos disponíveis eram os ramos das árvores e o muro de separação da estrada. O árbitro Manuel Vicente passara os instantes que antecederam o primeiro jogo de fita métrica na mão, procurando aquilatar se as marcações do terreno correspondiam às medidas exigidas.

A Federação manteve-se surda à solicitação académica e o ambiente em redor do encontro tornou-se infernal. Em causa, não estavam só as pretensões do CAC em regressar à 1ª divisão. Pretensões que chocavam com as do Alcobaça, o que explicará que em Celorico se vissem bandeiras alcobacenses e simpatizantes do clube a apoiarem a Desportiva da Guarda.

Entre os adeptos desta vivia-se, por sua vez, um enorme sentimento de revolta pelos dois pontos que se sabia estarem na iminência de serem ganhos na "secretaria" pelo Sporting da Covilhã, que rivalizava com os egitanienses na luta pela fuga à despromoção. Dois pontos esses que os "verde-brancos" da serra da Estrela tinham perdido no campo da Oliveirense, em jogo onde esta fizeram alinhar um atleta que se encontrava castigado pela Federação. E sem os quais era o Covilhã, e não a Guarda, a descer de divisão.

Foi neste contexto que o CAC passou os dias que antecederam o encontro estagiando em local mantido secreto. Na manhã de 13 de Junho, partiram de Coimbra 30 autocarros e centenas de automóveis cheios de adeptos, mobilizados por panfletos profusamente distribuídos pela cidade. E a GNR destacou, para o campo e arredores, cerca de 300 agentes, muitos dos quais acompanhados de cães-polícia.

Revelaram-se impotentes para controlar a situação. À medida que os simpatizantes do CAC iam entrando no campo, eram recebidos com pedradas oriundas das árvores circundantes. E o mesmo aconteceu, mal os primeiros jogadores do Académico entraram no terreno de jogo, para o aquecimento. Aos 3 minutos, o árbitro Marques Pires, de Setúbal, tem de interromper a partida pela primeira vez, tal a imensidão de objectos que cai sobre o pelado. E a violência aumenta ainda mais quando, aos nove minutos, Aquiles coloca o CAC em vantagem. Os atletas do Académico evitam aproximar-se das linhas laterais. Os que têm de efectuar os lançamentos com a mão são constantemente "bombardeados" da assistência por arames dobrados, disparados por fisgas. Não é tudo. Aos 24 minutos, Eldon faz o 2-0 e os egitanienses contestam a legalidade do golo. Pouco depois, o juiz expulsa dois jogadores do Guarda, a acrescentar a um primeiro - por sinal um suplente - que já mandara recolher mais cedo aos balneários. E mostra alguns cartões amarelos a outros atletas que dão evidentes sinais de nervosismo.

É quanto basta para que o campo seja invadido, levando a nova interrupção, que agora se prolonga por 18 minutos. Os relatores da RDP Braga da Cruz e António Alberto, de cujas mãos chega a ser arrancado um microfone, suspendem a emissão, por considerarem não ter condições para prosseguir o seu trabalho.

Aos nove minutos da segunda parte, Camegim marca o 3-0 e arruma a questão. Mal o cronómetro regista os 90 minutos regulamentares, Marques Pires apita e corre para as cabinas. É apoiado por Gaspar, guarda-redes do Académico, que lhe grita: "Vamos embora, vamos embora, que eles matam-nos aqui!". Mas os incidentes continuam durante muito mais tempo. O treinador Mário Wilson é a vítima maior: desde cuspidelas a pontas de cigarro acesas, tudo lhe caiu em cima. Pelo menos uma dezena de pessoas teve de receber assistência hospitalar. O autocarro com a equipa do CAC só chegou a Coimbra, onde foi recebido em apoteose, cerca de sete horas após o termo da partida. Os conimbricenses estavam convencidos de que se consumara o regresso à 1ª divisão.

"Ambiente de guerra em Celorico da Beira", escrever-se-ia no dia seguinte em "A Bola". Enquanto os jornalistas Francisco Rosa e José Carlos Freitas garantiam, na "Gazeta dos Desportos", que "os jogadores do Académico não contribuíram absolutamente nada para tal espectáculo, mostrando-se sempre interessados em jogar à bola e só isso". Isto após terem descrito assim o cenário de Celorico: "O que estava em disputa não parecia um jogo, era uma guerra; quem estava do outro lado não pareciam jogadores adversários, eram inimigos a abater; o que estava em questão não parecia ser a verdade desportiva, mas a desforra primária, a agressão simples".

Retirado de ACADÉMICA HISTÓRIA DO FUTEBOL, de João Santana e João Mesquita.
PS: Eu estive lá e sobrevivi, mas com graves sequelas psicológicas. Ainda, um dia, os egitanienses vão ter que me pagar com juros isso tudo.

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